domingo, 23 de setembro de 2007

A imprensa fez a coisa certa

Editorial – Estadão – 25/8/07 – Pág. A3

Mais uma vez a imprensa foi levada ao banco dos réus por ter o jornal O Globo divulgado as mensagens de correio eletrônico entre os ministros Ricardo Lewandowski e Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), captados pelo fotógrafo Roberto Stuckert Filho. Eles trocaram e-mails na sessão de quarta-feira da Corte, reunida para decidir se abre o processo requerido pelo procurador-geral da república contra 40 acusados de envolvimento com o mensalão. O presidente Lula falou em “invasão de privacidade”. O ministro da defesa, Nelson Jobim, ex-titular do Supremo, em “intromissão anticonstitucional em um poder da República”. O presidente da OAB, Cezar Britto, afirmou que o Brasil não pode ter um Big Brother nem cair num “estado de bisbilhotagem”. O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Walter Nunes, considerou que “a revelação das conversas entre os ministros maltrata o principio basilar da democracia”.
A confusão é geral, diria Machado de Assis; mas não precisava ser. As democracias são regidas, entre outras, por duas leis de bronze. Uma assessora à sociedade o direito à informação. Outra assegura o direito à intimidade. Por vezes esses princípios parecem a caminho de colidir na zona de sombra de onde termina o primeiro e onde começa o segundo. Porém não – definitivamente, não – neste caso. A informação que a ordem democrática assegura diz respeito aos atos de interesse público praticados por agentes públicos, ainda mais em eventos públicos, mais ainda em recintos públicos – abertos aos “do povo”, como dizem os juristas, e àqueles cuja missão consiste em lhes dar ciência do que se passa nas instituições que sustentam e existem para servi-los. Fora disso, a vida privada é inviolável, salvo por ordem judicial em contrario, como nas autorizações para a interceptação de comunicações de suspeitos de atividades ilícitas, em inquéritos criminais ou na instrução de processos penais.
“Bisbilhotar”, para usar o termo do dia, a esfera particular de figuras públicas – ou seja, as suas atividades e relacionamentos, quando não há motivo razoável para presumir que possam afetar o apropriado exercício de suas funções – é algo inaceitável e merecedor de sanções severas. É também, na sociedade do espetáculo dos dias atuais, em toda parte, um aviltamento dos padrões elementares de decência comum sem os quais a civilidade é no máximo um simulacro. Mas não faz o menor sentido equiparar aos malefícios da cultura de massa, simbolizada por esse detrito televisivo chamado Big Brother – e muito menos à sua versão orwelliana -, o registro e a divulgação de diálogos – por que meio se dêem, ao alcance de terceiros – entre dois membros da mais elevada instancia do Poder Judiciário num julgamento de interesse nacional e franqueado à mídia. Esse último fato, aliás, só engrandece o Supremo. O televisionamento dos seus debates é um exemplo reconfortante de que, apesar de tudo, as instituições funcionam.
Onde, portanto, a invasão de privacidade ou a intromissão anticonstitucional quando os ministros interlocutores, na plena condição de agentes públicos togados, trocavam idéias sobre questões públicas? A imprensa não só nada transgrediu, mas fez a coisa certa, aquela que é a sua razão de ser: desvendar para a coletividade o que ela precisa saber, como atributo de cidadania. Jornalista e jornal serviram ao público, informando-o do que pensam dois ministros do STF sobre a matéria a respeito da qual devem se pronunciar, sobre os motivos do presumível voto de um colega no mesmo caso e sobre aspectos da nomeação do eventual substituto do outro, que acabou de se aposentar. O problema – e cada qual julgue como queira se problema existe – seria a adequação da conduta dos dois magistrados, naquelas circunstancias especificas, e o teor do que se escreveram, de forma acessível às lentes de um fotógrafo a poucos passos deles. O que conta é que os brasileiros comuns puderam conhecer algo do funcionamento da sua Corte maior.
Nas palavras do jurista Ives Gandra Martins, “foi um brilhante trabalho de jornalismo, mas, para quem vive a rotina do Judiciário, nada do que foi apresentado é novo”. Exemplifica: “Às vezes, frases agressivas são trocadas até na hora do café. Só que para o público isso não costuma ser revelado”.

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